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Capítulo 1: As lágrimas de Antemar

O vento continuava a soprar insistentemente na Rua do grifo, fazendo com que todas as bandeiras com as heráldicas da cidade de Brava Solaris no topo das muralhas se agitassem com violência acima da cabeça de Nóc, a noite estava calma na cidade alta, quase não se ouvia nenhum som na rua com exceção dos passos de alguns poucos guardas pisando nas poças d'água enquanto faziam a sua ronda e do burburinho distante de que vinha da taverna acompanhado de uma melodia tão baixa a essa distância que não era mais do que a sugestão de uma música.

Nóc ouviu o som de cota de malha chacoalhando e deteve seu passo, se escondeu no vão entre duas casas,oculta pelas sombras e esperou que o guarda passasse.

Os guardas eram barulhentos, e era fácil para Nóc evitá-los, ela podia ver a luz de suas tochas surgindo antes deles virarem a esquina, os pés de Nóc eram leves e seus passos não pareciam produzir o menor dos sons, e ao contrário dos guardas ela não trazia consigo uma lamparina, nem mesmo uma tocha, a luz denunciaria sua posição e os olhos élficos de Nóc eram capazes de enxergar tão bem no escuro quanto enxergariam a luz do dia, tão pouco vestia metal pesado como eles faziam, armaduras pesadas são barulhentas e te deixam lento, Nóc precisava ser rápida hoje, trajava uma armadura de couro batido de um marrom tão escuro que era quase negro, sem nenhum tipo de símbolo ou ornamento, no cinto grosso de couro levava uma espada curta e várias adagas de arremesso feitas de metal leve, lixado até ficar fosco para que não refletisse qualquer luz, além de uma grande variedade de pequenos frascos de vidro com líquidos de diversas cores tampados por rolhas, por cima da armadura trajava uma capa cinzenta de linho com capuz que encobria seu rosto na escuridão, enrolado no pescoço pendia um cachecol vermelho com aparência encardida e nas costas levava uma aljava de couro negro cheia de flechas com penas de arara negra, uma espécie que habitava as florestas do sul.

Seu semblante não demonstrava a menor das preocupações, apesar do perigo, seu rosto estava calmo, ela tinha os traços finos dos elfos, sua expressão era astuta, transparecia uma sagacidade quase felina, uma cascata de cabelos negros lhe caía pelos ombros, seus olhos eram de um azul profundo, e em seus lábios sempre brincava a sugestão de um sorriso, nas costas de sua mão direita trazia uma tatuagem que resplandecia com um brilho prateado lançando uma fraca luminosidade contra a escuridão da noite, era uma tatuagem de um eclipse, um lembrete de sua herança e de sua maldição, o motivo pela qual foi renegada pelo seu povo que rapidamente a exilou.

Os Helenar, vulgarmente conhecidos como elfos da lua acreditam que sua divindade, a deusa da lua Diana abençoa a criança no dia do seu nascimento com sua presença, e a fase da lua em que a criança nasceu é gravada magicamente na mão da criança em um ritual, porém aqueles que nascem em uma noite de eclipse são considerados malditos entre os Helenar e são exilados.A esses exilados é dado o nome de Lumien, os sem luz, e esse foi o destino de Nóc assim como o de todos os Lumien.

A elfa andou pela rua examinando os arredores com seus olhos de caçadora perscrutando o caminho a sua frente, o ar da noite estava frio e a rua ainda estava úmida devido a chuva que havia parado de cair a não mais do que uma hora, era uma rua simples o chão era feito de pedras cinzentas e em formato levemente côncavo para que a água escorresse para a canaleta de pedra escavada no meio da rua por onde escorria em um fluxo constante o restante da água da chuva que convergia para os pontos mais baixos da cidade, as casas da rua eram feitas da mesma pedra escura ou de madeira, porém em sua maioria não eram casas de fato, mas sim pequenos comércios, ferreiros, oleiros, courarias, lojas de tapeçaria, de componentes mágicos e focos arcanos, tecelões, joalheiros, marceneiros e o mais importante naquele momento, alquimistas, as construções da rua inteira já se encontravam as escuras e desabitadas com exceção das pouquíssimas casas que surgiam aqui e alí em meio a tantos comércios.

Nóc seguiu até o fim da rua, silenciosa como uma sombra, se esgueirou até o limite da parede da casa da esquina e observou a grande praça central, era um grande círculo no centro da cidade alta, formado em sua maioria pelas lojas dos mais proeminentes comerciantes da cidade, era com toda certeza o melhor lugar para um comércio, visto que praticamente todas as ruas importantes da cidade alta acabam convergindo para a praça, além de ser um dos pontos mais guarnecidos da cidade tornando a possibilidade de ter sua loja saqueada quase nula, devido as milícias contratadas pelos comerciantes. É dito que as melhores lojas estão sempre na praça central, Nóc não sabia dizer se isso era de todo verdade mas com certeza eram as mais ricas, no centro da praça se erguia uma grande fonte com uma estátua do fundador da cidade Merenor Gryfindel, levantando sua espada lendária, a garra do grifo, e Nóc podia ver vários guardas patrulhando a praça olhou para eles por alguns segundos mas logo viu seu alvo, o bazar alquímico de Sharrad, era uma grande casa de dois andares, com um toldo de tecido verde escuro acima da porta e uma placa balançando com o vento mostrando um frasco de alguma poção esculpido na madeira de carvalho, o telhado da construção era pontudo e possuía uma clarabóia de vidro do lado esquerdo, as paredes eram de madeira branca, entrecortadas por vigas de madeira escura.

Nóc conhecia aquela loja, e conhecia o dono dela, um homem flácido e com sorriso malicioso, chamado Sharrad um alquimista vindo do continente de Rajhar, que rapidamente se tornou o mais respeitado alquimista da cidade, por ser conhecedor de técnicas que segundo ele o povo do continente de Daerong já havia esquecido a muitas eras, a própria Nóc já havia estado em sua loja em duas ocasiões: para comprar veneno de manticora para finalizar um trabalho com um alvo problemático e quando estava em busca de extrato de Ipupiara, em ambas as ocasiões ele ficou feliz em fornecer o que ela procurava, e mais feliz ainda por cobrar um valor exorbitante. Porém dessa vez Nóc não podia arcar com o custo do produto que ela precisava e tão pouco tinha tempo para arrecadar o dinheiro, era uma loucura roubar uma loja na praça central e Nóc sabia disso, havia guardas demais e o local era exposto demais, porém não acreditava que nenhum outro alquimista da cidade teria o que ela procurava e ela sabia que tinha pelo menos uma rota de fuga que ela poderia usar, e seus companheiros estariam atentos a movimentação estranha caso ela precisasse de ajuda, apesar de ela os ter proibido de interferir diretamente no roubo, era perigoso demais, e ela não colocaria mais vidas em risco..

A elfa em volta mais uma vez, perscrutando o ambiente com seus olhos argutos, ponderando cada uma de suas opções e logo decidiu o caminho a seguir, pulou nos barris que se encontravam encostados em uma casa de pedra e em seguida pulou novamente em direção a parede e se aproveitou dos sulcos entre as pedras da casa para fazer seu caminho até o topo, em um instante ela estava no terraço de uma pequena casa de pedra, avaliou novamente a posição dos guardas agora com um campo de visão mais favorável, e percebeu que a informação que Flyn lhe dera estava correta, eram oito guardas no total no círculo central, além da patrulha com mais dez homens que passavam ali regularmente de meia em meia hora para conferir se estava tudo bem, sete dos guardas trajavam cotas de malha compridas cobertas por tabardos negros com a heráldica da cidade, um sol dourado acima de um escudo prateado sobreposto por uma espada cravada em uma pedra, tudo isso bem preso por um cinto de couro marrom escuro com uma espada curta embainhada, em suas cabeças traziam elmos sem viseira com proteção para o nariz, e em suas mão carregavam pesadas alabardas que mantinham apoiados pesadamente no chão ao seu lado, o outro homem que estava com eles entretanto era o real problema, ele trajava as vestes dos Templários, uma capa preta bifurcada lhe caía pelas costas e terminava em um capuz igualmente negro, por debaixo do capuz uma máscara de bronze com feições angélicas cobria o rosto do homem revelando apenas os olhos que emitiam uma luz azul fantasmagórica proveniente dos rituais de iniciação de sua ordem, por debaixo da capa preta estava trajando uma armaduras de placas negra esmaltada, finamente trabalhada com minúsculos arabescos finíssimos e dourados em baixo-relevo que formavam minúsculos vórtices por toda a armadura, no peito um sol negro delineado pelos mesmos arabescos se destacava parecendo reluzir mais que o resto da armadura, e em suas costas carregava espada longa repousada em uma bainha de couro grosso marrom escuro.

Nóc observou de longe o templário e sentiu um arrepio percorrer sua espinha, ela nunca havia enfrentado um deles antes, mas sabia que poucos que os enfrentavam estavam vivos para se gabar de tal feito, os templários não são apenas guerreiros temíveis no combate corpo a corpo como também são arcanistas de elite treinados pela ordem de Antemar, especialistas em perseguição rastreamento e contenção, seus corpos passam por transformações e rituais arcanos que visam aperfeiçoar seus sentidos e sua proeza física, quando terminam o treinamento são mais soldados do que homens, ensinados a ser guerreiros implacáveis, os templários de Antemar são a guarda de elite da cidade, Nóc sabia que ele seria seu real problema, e que se chamasse a atenção dele sua missão estaria perdida, até mesmo entre os vanakir, o antigo clã de Nóc eles eram temidos.

Após mais alguns minutos de análise, ponderando suas opções Nóc soube o que fazer, pulou para de telhado em telhado sorrateiramente até chegar o mais perto do bazar que se atrevia sem chamar atenção dos guardas, parou na varanda da loja de ervas que ficava ao lado do bazar, se aproximou da beirada da mureta para se colocar em uma posição mais vantajosa e sacou seu arco tirando de sua aljava uma flecha que ela encaixou no arco enquanto murmurava as palavras no idioma antigo, tensionou a corda mirando em seu alvo, sentiu o calor que flecha emitia emanando em seus dedos e no seu rosto, observou enquanto a ponta da flecha se tornava incandescente e por fim soltou a corda e observou enquanto a flecha voava na escuridão do céu noturno em direção ao seu alvo, uma casa na rua do freixo que Nóc sabia estar desabitada, olhou em volta para se certificar que ninguém a havia avistado, em especial o templário, a arqueira viu ele parar que a flecha passou alguns metro acima dele como se sentisse algo, mas antes que ele tivesse tempo de investigar a flecha de Nóc atingiu o telhado de palha da casa que irrompeu em chamas instantaneamente causando um grande incêndio iluminando toda a rua do freixo com uma luz bruxuleante e lançando fumaça negra que subia em espirais em direção ao céu noturno. Todos os guardas olharam para aquilo sem entender o que aconteceu e correram em direção ao incêndio para tentar contê-lo. todos exceto o templário cujo o olhar perscrutava os telhados das casas próximas da de Nóc.

"Ele vai me achar"

Nóc percebeu, e em um piscar de olhos se deitou atrás da mureta da casa, ela precisava distraí-lo apenas por um segundo, um segundo era tudo que precisava para entrar no bazar, ela precisava fazer algo, então a resposta veio a sua mente, ela sabia o que fazer. Nóc se concentrou na flecha que ela havia atirado, fechou seus olhos e a visualizou em meio as chamas da casa arruinada, sentiu sua energia ainda emanando da flecha, e se esforçou para refazer seu vínculo com ela, então sentiu-se como se um fio de pura energia ligasse ambas, projetou sua vontade através desse fio enquanto enquanto fechava sua mão direita, viu a tatuagem do eclipse nas costas de sua mão se iluminar e logo depois sentiu uma rajada de energia percorrer o fio até alcançar a flecha que explodiu em uma rajada de fogo ainda maior lançando pedaços de madeira queimada e chumaços de palha pegando fogo para todos os lados na rua, Nóc sabia que isso podia acabar destruindo outras casas mas era uma decisão calculada, todos já estavam acordados a esse ponto, talvez mais uma ou duas casas se perdesse no incêndio, mas dificilmente haveria feridos. A elfa não esperou para ver se havia funcionado apenas soube que aquela seria sua única chance.

Levantou-se num salto e correu pela varanda em que se encontrava enquanto puxava seu cachecol vermelho até o nariz para encobrir seu rosto, tomou impulso na amurada e saltou, sentiu seus pés perderem o contato com o chão enquanto seu corpo se projetava no ar em direção a clarabóia de vidro do Bazar, se preparou para a dor e sentiu seu ombro se chocar contra o vidro, que logo se quebrou em milhares de fragmentos que se projetaram no ar como uma chuva de facas, Nóc viu o chão abaixo dela se aproximar e se preparou para a queda, caiu com um rolamento no chão e sentiu os minúsculos fragmentos de vidro se cravando no couro de sua armadura e até mesmo na carne por debaixo dele deixando sua roupa molhada de sangue, mas não havia tempo para dor agora, logo já estava de pé no andar superior do Bazar. Nóc sabia que não tinha muito tempo o Templário provavelmente já tinha percebido a clarabóia quebrada, a arqueira olhou em volta e se viu parada em meio a uma imensidão de frascos alquímicos de todos os tipos, estava no estoque de Sharrad, mas sabia que o que ela procurava não estaria no meio dessas ninharias, Sharrad possuía um cofre atrás do balcão onde guardava suas mercadorias mais caras, se ele realmente tivesse Lágrimas de Antemar era lá que estariam. Nóc correu em direção as escadas e chegou até o primeiro andar, foi atrás do balcão e pode ver o cofre mas antes que pudesse se alegrar e ouviu uma voz autoritária que bradava do lado de fora.

—É uma distração—A voz era cavernosa, e ao mesmo tempo era rouca mas retumbava por todo o ambiente, ao mesmo tempo a voz era calma e ameaçadora e Nóc soube quem falou, tal voz só poderia pertencer a um templário— quem causou isso está ali.

O homem completou.

Nóc correu na direção do cofres e sacou um pequeno frasco do seu cinto, com um líquido verde, saliva de Baul, algo extremamente raro corrosivo. A elfa tirou a tampa do frasco e jogou na tranca do cofre, escutou o chiado que o líquido fez quando começou a derreter o metal soltando uma fumaça cujo o cheiro era nauseante, Nóc escutou passos vindo em direção a casa e logo percebeu, seu tempo estava se esgotando, a porta do bazar não seguraria eles, precisava pensar em algo rápido.

olhou em volta procurando por algo útil, e logo encontrou o que buscava Sangue de Jotun, um grande recipiente de vidro com um líquido azul espesso quase translpucido, estava em uma prateleira do outro lado do balcão, Nóc pulou por cima do balcão e pegou o pesado jarro de vidro, foi necessário usar todas sua força para lançá-lo na porta, o jarro se estilhaçou e o líquido azul escorreu por toda a superfície porta mas antes que pudesse alcançar o chão ele começou a se solidificar emitindo um chiado acompanhado pelo som de minúsculos cristais de gelo trincando enquanto se tornavam sólidos, o quarto inteiro de repente ficou frio com a aura gélida que o líquido exalava enquanto se tornava uma crosta de gelo sólido que cobria a porta.

Nóc não esperou para ver se aquilo seguraria os guardas, pois sabia que não duraria mais do que um minuto, pulou de volta por cima do balcão puxando a porta corroída do cofre, mas ele ainda se recusava a abrir.

BAAAM!

Nóc ouviu um estrondo e vindo da porta seguido pelo som de gelo trincando e soube que os guardas estavam tentando derrubá-la, continuou a puxar a porta do cofre mas ela permanecia imóvel ainda exalando fumaça fétida enquanto era corroída, Nóc sentia vontade de vomitar, estava tonta e sentiu o ambiente todo rodar ao seu redor, a fumaça parecia se impregnar em suas narinas, fazendo o estômago de Nóc rodar, ela podia sentir suas forças se esvaindo aos poucos.

BAAAAM!

Nóc escutou novamente e dessa vez o gelo rachou ainda mais, era sua última chance, reunindo todas as forças num último esforço colocou os pés na parede e puxou a porta do cofre com as duas mãos, sentiu o baque quando a porta finalmente cedeu, e sentiu seu corpo se projetando para trás impulsionada pela própria força, ouviu outro baque, um som surdo que ecoou em sua mente acompanhado de um impacto atrás de sua cabeça que imediatamente escureceu sua visão, sentiu a umidade escorrer pela sua nuca e seus cabelos ficarem grudentos, então percebeu que bateu a nuca contra o balcão atrás de sí, sentiu a sala rodar ao seu redor e sua visão ficar turva.

—Saiam da frente!

Nóc escutou a voz cavernosa bradar com uma amálgama de calma e fúria, de repente soube que seria sua última chance olhou para o cofre em busca de seu prêmio enquanto tentava levantar e logo viu diversos frascos dentro de uma bolsa de couro, tentou ler as etiquetas mas sua visão estava nublada o mundo girava ao seu redor, pegou a bolsa e passou sua alça de couro pelo corpo, correu em direção a escada o mais rápido que pode mas a cada passo sentia seus movimentos mais estranhos e desajeitados.

BAAAAAM!!

De repente escutou o som mais alto de todos, som de madeira se quebrando e quando olhou para trás sentiu os estilhaços frios do gelo voarem contra seu rosto junto a lascas de madeira, sentiu uma ardência na bochecha e filetes de sangue escorriam pela sua face, escutou um chiado estridente e percebeu que havia fogo em meio ao gelo que bloqueava a porta, então percebeu que era a espada do templário que estava em chamas e havia trespassado não só a porta como o gelo que havia se formado lá, enchendo a sala de vapor e com o som do gelo chiando ao evaporar instantaneamente ao toque da lâmina de fogo, logo viu ele puxar a espada para fora e pode vêr uma única luz azul fantasmagórica através da fenda na madeira, ele já há havia visto,, cambaleou o mais rápido que pôde em direção a escada, mas a tontura lhe havia tirado toda a sua agilidade, tropeçou nos primeiros degraus da escada e escutou o som do que restou da porta se partindo, se obrigou a levantar e correu escada acima escutando os passos se aproximando, viu a janela que ficava na frente da escada e logo percebeu que essa seria sua porta de saída dali apertou o passo e chegou no topo da escada com a cabeça ainda rodando e sem coragem de olhar para trás, sentiu seu estômago se revirando e o gosto amargo de vômito na garganta, pulou em direção a janela com as mãos protegendo o rosto e sentiu seu corpo se projetar no ar levantou os braços para proteger o rosto se preparando para o impacto contra o vidro, mas antes que se chocasse com a janela sentiu um baque seguido de uma dor excruciante em sua panturrilha, seu corpo todo se esticou no ar e Nóc pode sentir sua perna esquerda quase se separar do resto corpo, antes que pudesse sequer assimilar a dor viu o chão abaixo de sí subir para abraçá-la, mas a dor em sua perna era tanta que a elfa mal sentiu o impacto quando seu queixo se chocou contra o assoalho, apenas sentiu gosto de ferro e o cheiro nauseante de carne queimada e logo percebeu que era sua perna que exalava esse cheiro, o templário estava na base da escada com um chicote de fogo em sua mão que permanecia esticado e firmemente enrolado na perna de Nóc que exalava fumaça negra com um cheiro nauseabundo, Nóc berrou de agonia quando ele puxou o chicote com força fazendo ele se apertar mais contra a carne de sua perna, ele puxou mais uma vez e o corpo de Nóc sentiu seu corpo sendo arrastado pelo chão e se chocando contra os ângulos agudos dos primeiros degraus da escada. viu ele se aproximando escada acima com o chicote em uma mão e a espada na outra, a calma da expressão da máscara de bronze era terrivelmente destoante com os olhos azuis brilhantes que exalavam ódio por debaixo dela, na base da escada os outros soldados esperavam com expressões assustadas, sem fazer a menor menção de ajudar o templário.

Nóc estava prestes a se dar por vencida e aceitar a morte quando se lembrou o motivo de estar alí.

"Helm" Ela pensou "Helm precisa de mim"

De repente Nóc estava de volta a sanidade, seu corpo era apenas uma massa de agonia sua cabeça doía tanto que parecia estar prestes a explodir o cachecol que cobria seu rosto parecia sufocá-la agora, e ela o rasgou em um movimento rápido e levantou o mão em direção ao homem da máscara de bronze cujos olhos brilhantes pareciam se divertir com o sofrimento dela, Nóc sentiu a energia de todo seu corpo se projetar até sua mão como se serpentes de energia rastejassem por sua pele, viu a sua tatuagem se iluminar com uma luz tão forte que ofuscou todos os que estavam em volta, ondas de eletricidade corriam através de seu corpo e de repente sua mão se aqueceu, por um instante pareceu mais quente do que o chicote de chamas que envolvia sua perna e mas realmente durou apenas um instante antes de Nóc sentir essa energia se projetar através de sua mão no formato de uma lança de luz tão clara quanto a luz da própria lua, Nóc gritou e sentiu o ar deixar seus pulmões no mesmo instante que a rajada de energia deixou sua mão voou na direção do templário tão rápido que lançou uma onda sônica no ar jogando o capuz de Nóc para trás junto com seus cabelos negros, a lança de luz se projetou no ar e em um instante acertou o olho direito do cavaleiro e Nóc sentiu o chicote afrouxar por um segundo. Era sua chance. sacou uma adaga de seu cinto e cortou a corda, no mesmo momento o cavaleiro cambaleou para trás e caiu sobre um joelho, mas não gritou, nem demonstrou nenhum sinal de que havia sentido dor.

Nóc se levantou sentindo dor em tantos lugares que já nem era capaz de discernir onde estavam seus ferimentos, soube que não conseguiria fugir deles naquelas condições, até que olhou para a bolsa de couro, viu um frasco com um líquido laranja luminoso que com bolhas vermelhas fervilhando dentro dele, agradeceu a Diana e soube que talvez tivesse uma chance. pegou o frasco enquanto corria em direção a janela se esforçando para não desmaiar, sentiu o vidro quente do frasco e segurou ele com mais força, olhou para trás e viu o templário se levantar enquanto arrancava o cristal de energia do olho com a mão em um único movimento sem a menor hesitação, metade da máscara dele agora estava coberta de sangue, e onde antes haviam aqueles olhos assustadores agora havia apenas um olho brilhante de um lado e do outro uma ruína de sangue e carne queimada, destruída pela lança lunar de Nóc, o cavaleiro começou a correr escada acima na direção de Nóc ganhando velocidade de maneira assustadora, a elfa apenas teve tempo lançar o frasco escada abaixo e pulou pela janela com um salto desajeitado, sentiu o vidro se estilhaçar mais uma vez contra seu corpo e viu o chão do beco subir para abraçá-la, se virou de costas em pleno ar e abraçou a bolsa de couro para garantir que o seu prêmio estaria seguro, antes de atingir o chão ouviu o som da explosão e os gritos dos guardas, ouviu os vidros se estilhaçando dentro da casa e e de repente uma onde de calor arrebatante vinda de dentro da casa se chocou contra ela, Nóc sentiu seu corpo sendo jogado contra a parede pela onda de impacto.

Nóc se encolheu abraçando a bolsa de couro com ainda mais força para proteger seu prêmio sem ligar para o que aconsteceria com seu corpo, e sentiu o impacto em suas costas quando parede a atingiu, sentiu tudo ficar turvo novamente, sentiu o ar ser arrancado de seus pulmões pelo inpacto e sentiu o cheiro de fumaça que vinha da ruína que se tornou o bazar de Sharrad, o cheiro de carne queimada lhe causava náuseas e Nóc já não sabia dizer se vinha de sua perna ou dos corpos dos guardas dentro do bazar.

Nóc se forçou para cambalear para longe da confusão não demoraria muito e mais guardas viriam, e se a pegassem ela não teria chance alguma, cada passo era uma agonia para sua perna, sua calça estava em farrapos e o pedaço do chicote continuava preso em sua perna fundido a sua pele derretida pelo calor. Além disso sua perna também deveria estar deslocada pela força do puxão quando o chicote a interceptou no ar, Nóc andou pelas ruas com as pessoas olhando curiosas para ela pela janela, tentou tapar o rosto com seu cachecol vermelho, mas ela o havia rasgado, bufou de dor novamente e percebeu que não chegaria ao esconderijo, virou a esquerda em um beco e viu a boca de lobo cuja a grade estava cerrada, sabia que não seria encontrada ali, pelo menos não pelos guardas, era um dos esconderijos de sua guilda e com alguma sorte alguém viria procurar por ela ali, talvez Flyn ou Mark, Nóc olhou em volta para se certificar que ninguém a havia seguido, se deitou no chão e rolou para dentro do bueiro se preparando para a dor da queda, protegeu a bolsa de couro firmemente em seus braços, e sentiu o chão a atingir, quando sua perna bateu no chão ondas de dor se propagaram por todo o corpo de Nóc que rilhou os dentes com tanta força que pensou que fosse quebrá-los.

Nóc se forçou a sentar na pedra suja do esgoto e engatinhou para longe da boca de lobo, respirou fundo e finalmente tomou coragem para olhar para sua perna, os restos do chicote tinham de fato se fundido a pele derretida dela, formando crateras em sua perna que estava coberta de bolhas e pele enegrecida. Nóc soube que perderia a perna se não fizesse algo, e decidiu o que deveria fazer, tirou uma adaga do cinto juntamente com a bainha de couro grosso e a desembainhou, colocou a bainha entre os dentes e aproximou a adaga da ruína de sua perna, tentou colocar a lâmina da adaga com a parte chata entre sua pele e a corda para conseguir arrancá-la dali mas sua mão tremia e sua visão estava cada vez mais turva.

Nóc podia sentir o suor frio escorrer de seu rosto, sentiu o toque frio do aço e uma outra onda de agonia se propagou por seu corpo, depois de algumas tentativas frustradas finalmente conseguiu calçar a adaga no local certo e se preparou para a verdadeira dor, colocou a faca entre a corda e a pele sentindo o seus tecidos se desprenderam da carne conforme a faca percorria seu caminho, e de repente Nóc estava em um mundo de agonia, mordeu a bainha de couro com uma força descomunal e sentiu sua visão escurecer, mas sabia que deveria terminar o que começou, prendeu a corda do chicote entre a parte chata da adaga e seu polegar, se preparou para puxar, urrando de dor e sentindo o suor frio e as lágrimas escorrendo de seus olhos, então ela fez o que era necessário puxou a corda com força e sentiu sua pele rasgando e se desfazendo, se desprendendo de sua carne ao sair grudada no chicote, mais lágrimas em seus olhos e de repente sentiu a tudo escurecendo a sua volta novamente, e agora estava de fato chorando de dor, sentiu algo em sua boca e logo percebeu que mordeu a bainha com tanta força que a havia separado em dois pedaços, sua visão estava turva e sua mão tremiam mais do que nunca, olhou para sua perna e viu o caminho do chicote delineado nela como um baixo relevo ensanguentado margeado por pele enegrecida e bolhas que surgiram e estouraram no mesmo momento sob o calor do chicote, Nóc não aguentou a visão de sua perna, sentiu seu estomago se revirar como se fosse uma serpente moribunda, e de repente sentiu o gosto amargo de vômito se misturar ao sangue de sua boca tentou cuspir os pedaços de couro da adaga e sentiu o vômito deixando sua boca junto a eles. sua visão começou a se desvanecer mais e mais e tudo pareceu ficar lento por alguns segundos, Nóc sentia o sangue fluindo para fora de sua perna e a vida fluindo para longe de seu corpo.

"Aguente, só mais um segundo" Nóc pensou consigo mesma "aguente por Helm"

E ela aguentou. Nóc levantou novamente a mão com a tatuagem na direção do que sobrou de sua perna, sentiu que toda a sua energia que restava estava fluindo em direção a sua mão com a tatuagem do eclipse, que agora brilhava novamente iluminando o túnel escuro dos esgotos, sentiu suas últimas forças fluírem até a tatuagem, e a dor de sua perna começou a se esvair aos poucos junto com sua consciência e então tudo ficou escuro.

Capítulo 2: Uma nova esperança.

—Nóc? Você está bem?

Falou uma voz alarmada a distância, e as palavras ecoaram na escuridão, era uma voz familiar.

—Flyn, me ajuda aqui!

A voz voltou a falar então desvaneceu-se rapidamente e se mesclou ao vazio, e de repente só existia dor e escuridão, mas então até mesmo a dor sumiu por alguns momentos, Nóc sentiu seu mundo girar a seu redor em volta do próprio eixo, girou e girou no escuro cada vez mais rápido até sentir sua consciência ser tragada pelo vazio. E então veio o estupor e a dormência que duraram pelo que pareceram ser anos até que a própria consciência de Nóc se dissipou inteiramente, e de repente não havia mais nada.

E continuou não havendo nada, por um tempo sem fim, na inconsciência o tempo é um conceito abstrato e sem importância. Mas o nada aos poucos se dissipava também e aos poucos o nada tomava a forma do corpo de Nóc que parecia voltar a existir aos poucos, e junto com a existência, havia dor, uma dor lancinante, uma dor terrível, mas até mesmo a dor era melhor do que a dormência, Nóc sentia essa dor se tornar mais e mais real, ao mesmo tempo que voltava a consciência e que conceitos como tempo e espaço voltavam a ganhar importância como se aos poucos voltasse ao mundo real, ao terrível mundo real e toda a agonia que vinha com ele. Sua perna parecia estar irrompendo em chamas que se alastravam por todo o seu ser, mandando ondas de dor crescentes através de seu corpo, e de repente a dor parecia ser a âncora de Nóc, a âncora que a prendia a realidade, se tornando mais e mais palpável ao longo do tempo, e a dor cresceu até atingir o ponto crítico que pareceu jogar Nóc para fora de seu sono como se fosse cuspida para a realidade, sentiu seu corpo flutuar e cair em questão de segundos, e viu a cama de palha abaixo de sí subir para apanhá-la em pleno ar, e quando a se encontrou acordada novamente sentiu seus pulmões se contraírem com a dor proveniente de sua perna, então abriu a boca para sugar ar novamente para dentro de sí como quem está a muito tempo abaixo da superfície d'água .

Nóc ouviu um gemido tão alto que era quase um grito e demorou para perceber que era seu, o quarto parecia surgir a sua volta conforme ela retomava a consciência. Então sentiu algo apertando de leve sua mão e percebeu que não estava sozinha, Helm estava com ela. Se virou sentindo outra onda de dor percorrer seu corpo, rilhou os dentes, e viu os profundos olhos verdes de Helm a encarando com uma expressão assustada, a garota estava ao lado da cama segurando com firmeza a mão de Nóc, e aquele olhar pareceu trazer a elfa de volta a realidade, Nóc sentia o suor escorrendo frio pela sua testa e o quarto parecia girar ao seu redor

—Ela acordou! Ela acordou!

Helm gritou e sua voz assustada ecoou pelo túnel e foi seguida pelo som de passos apressados. Logo Nóc pode ver outro rosto familiar surgir em sua frente, a visão de Nóc permanecia turva mas os traços de Hottari eram inconfundíveis, ele era um Vanara, exilado das ilhas Varanái, seu corpo era esguio e coberto de pelos negros um pouco rajados de branco nas pontas, denunciando sua idade, o rosto e as mãos eram as únicas partes que não eram totalmente cobertas de pêlo, suas feições eram símias, e lembravam as dos macacos que habitavam a grande floresta ao sul, tinha quase 2 metros de altura quando ereto, mas costumava andar levemente curvado, a pele do rosto dele era igualmente negra e ele possuía profundos olhos cor de avelã e carregava uma expressão de sabedoria, nenhuma roupa cobria seu torso apenas um colar de grandes contas brancas repletas de desenhos prateados, que dava duas voltas em seu pescoço e pendia solto contra o peito, além do colar vestia apenas uma calça negra de aparência simples que era mantida no lugar por um cinto de couro marrom escuro com um ornamento em bronze que representava o símbolo do deus Izan, uma lança emergindo do mar, do lado do cinto pendiam pequenas bolsas de couro e frascos com líquidos e ervas.

Assim que Hottari se aproximou Nóc pode sentir sua mão calosa pousar em sua testa com uma leveza que não cabia naquele corpo enorme.

—Bom dia Nóc.—O varanai falou, com um sorriso gentil no rosto—Você quase matou a pequena Helm de susto.

Nóc se preparava para responder mas sentiu uma pontada de dor e só conseguiu emitir um gemido fraco, se preparava para tentar novamente quando ele levantou um dedo a frente da boca enquanto balançava a cabeça negativamente e passou a mãozorra gentilmente pelo rosto de Nóc.

—Guarde suas forças por enquanto, pequena Nóc— disse o Símio ao passar a mão na cabeça de helm despenteando seus cabelos ruivos, antes de se virar pegando seus frascos do cinto e misturando o conteúdo deles em uma pequena tigela de madeira transformando as ervas em uma pasta esverdeada.—Já vai se sentir melhor eu prometo.

Nóc sentiu helm segurar mais forte sua mão e voltou seu olhar para ela, a garota era uma elfa assim como a própria Nóc mas só tinha 12 anos, seria considerada uma criança até mesmo pela contagem de idade dos homens, os olhos verdes da menina estavam marejados e seus cabelos vermelhos vivos agora desgrenhados lhe caíam pelos ombros e pela sua testa, Nóc se esforçou para levantar o braço sentindo uma dor excruciante por todo seu corpo e afastou uma mecha de cabelo da testa de Helm que sorriu por um segundo mas logo soluçou como se estivesse prestes a chorar, os olhos vermelhos da menina denunciavam que já havia chorado a não muito tempo.

—Não se preocupe Helm, ela vai melhor logo logo—Hotari prometeu colocando a mão no ombro da menina e tomando seu lugar sutilmente, e ela apenas assentiu com a cabeça, Hottari se inclinou para dar a Nóc a tigela que agora estava cheia de um líquido espesso de cor verde escura que emitia um odor pungente e fazia arder as narinas quando inalado— Vamos lá Nóc. Beba tudo, vai ajudar com a dor.

Nóc obedeceu mas assim que abriu a boca sentiu aquele cheiro invadi-la e teve que se esforçar para não vomitar, se forçou a tomar tudo de uma vez para não prolongar seu sofrimento, sentiu o líquido espesso descer pela sua garganta deixando um gosto amargo e uma sensação de dormência por onde passava, quando terminou de beber ainda sentia o líquido descendo grosso pela sua garganta como se rastejasse para dentro dela, aumentando mais ainda o seu enjôo. Nóc começou a tossir e se forçou a falar entre uma tosse e outra.

—Obrigado Hottari, mas agora acho que agora preciso de uma língua nova.

—Ora, vejo que o seu senso humor já voltou—O símio falou enquanto pegava a pequena cumbuca de volta das mãos de Nóc— Mas ele continua não sendo seu forte. Se sente melhor?

—Sim—Nóc respondeu e se surpreendeu com a resposta de alguma forma já não sentia mais tanta dor como antes, mas ela continuava ali, a espreita, Nóc sabia disso mas o remédia a havia afastado mesmo que só temporariamente—Na verdade sim, o que é isso que você me deu?

—Um preparado de ervas apenas, as florestas que vocês tem aqui no grande continente possuem muitas riquezas, minha cara, é uma pena que seu povo as ignore com tanta veemência e só veja um monte de troncos a serem cortados, eu só misturei algumas plantas que eu tenho catalogado em minhas viagens, com as pétalas de árvore sakura.

Nóc sabia que sakura era o jeito de os habitantes das ilhas battori se referirem as árvores de cerejeira cujas pétalas de um tom de rosa profundo eram consideradas sagradas pelo povo de Hottari.

—Nóc—Helm falou baixinho, quase um sussurro, ela sempre foi uma criança tímida e tinha acabado de conhecer Hottari, dito isso era um milagre que ela estivesse sequer falando na frente dele, visto que ela demorou semanas para falar até mesmo com a própria Nóc quando foi adotada— Você ta bem mesmo?

—Sim, Helm, já estou bem.

—Não, Não está não—Hottari falou com sua voz energética em um tom enfático, o povo dele geralmente não possui o menor tato para lidar com as outras espécies, tendem a ser diretos demais, e não veem necessidade em mascarar a realidade com eufemismos, por mais trágica que ela seja—Mas vai ficar!

Completou o símio, e Nóc pode ver o rosto de helm se acalmar de novo quando a menina suspirou.

—Isso eu garanto.—Ele completou se aproximando novamente da cama e apontando para a perna de Nóc—passei a noite sem dormir cuidando de sua perna, me diga que ideia é essa de tirar um cochilo nos esgotos, pequena Nóc? Será que perdeu a cabeça? Não! Não responda, prefiro não saber a resposta. Por pouco que não tive que amputar sua perna e se algum rastejante de sangue a houvesse encontrado naqueles túneis antes de flyn, hein?

Nóc engoliu em seco, e agradeceu aos deuses pela sorte que teve de Hottari ter voltado, ele não estava na toca do lobo quando ela saiu para sua missão, e Nóc tinha plena noção que as habilidades de cura de seus outros companheiros nem se comparavam as do símio, e que se dependesse de qualquer um deles ela provavelmente estaria de fato morta ou sem uma de suas pernas.

—Não tive escolha Hot—Nóc protestou—Tinha um maldito templário estava atrás de mim e....

—Eu já soube de tudo pequena Nóc, eu e a cidade inteira, as notícias que uma garota enfrentou um templário e sua tropa sozinha e viveu para contar a história já se espalharam, parabéns, agora a recompensa pela sua cabeça subiu ainda mais—O símio disse guardando as ervas nos frascos novamente—Se continuar assim você logo vai quebrar o recorde do Caneco de sangue.

Nóc riu, sentindo uma pontada de dor, passou os dedos pelos cabelos de Helm que agora estava sentada ao lado da cama com a cabeça escorada no colchão se aninhando cuidadosamente em Nóc.

—Quem é caneco de sangue?

Nóc perguntou curiosa.

—Um ladrão que viveu no começo da era da luz, pequena helm, ele roubou o cálice do rei de brava solaris de dentro do palácio.

Hottari explicou.

—E o que aconteceu com ele?

—O rei o capturou e obrigou ele a beber o próprio sangue na taça até que ele morreu.

Hottari respondeu novamente sem rodeios e sem perceber que talvez essa não fosse uma história adequada para uma criança, mas nóc não estava disposta a repreendê-lo agora.

—Que nojo.

Helm falou.

—Realmente, que nojo—Nóc disse fuzilando Hottari com o olhar antes de mudar de assunto— E além do mais, estou decepcionada, achei que matar um templário e uma guarnição inteira de soldados da praça central me fizessem pelo menos empatar com o caneco.

—Não matou.

Hottari andou até o canto da sala e pegou seu cajado que estava apoiado ao lado da porta ,era um bastão de quase dois metros, feito de madeira esmaltada vermelha e finamente adornada com arabescos de jade e ouro, era uma arma formidável de beleza rara, virou-se para Nóc e com uma expressão séria e repetiu antes que ela tivesse tempo de dizer qualquer coisa.

—Não matou.

—O que?

Nóc perguntou surpresa. Não acreditava no que estava ouvindo.

—Não matou—ele repetiu mais uma vez, curto e grosso, como se o que estivesse dizendo fosse a coisa mais óbvia do mundo—Ora Nóc, você devia saber que um templário não morre tão facilmente. Ele está vivo, e pelo que eu sei já voltou ao serviço, mas você o machucou bastante pelo que ouvi falar, infelizmente parece que o estrago que ele lhe fez foi tão grande quanto.

—Bastardo, quando eu pegar aquele fhja.... ai!

Nóc sentiu uma dor aguda nos dedos antes que pudesse completar a frase e viu que Hottari havia acertado os dedos de sua mão esquerda com o cajado.

—Não pragueje na frente da pequena, já é ruim o suficiente que a crie nesse esgoto.

—Pega leve—Nóc falou, acariciando os nós dos dedos que agora se encontravam vermelhos— já tenho lesões o suficiente.

—Aparentemente não o suficiente para lhe ensinar bons modos. Não é Helm?

E a garota assentiu rindo baixinho.

—Ora, estão de complô contra mim agora? não posso nem sequer dormir por algumas horas e já sou trocada por esse macacão?

Nóc falou rindo também.

—Dias. Horas não, dias minha cara nóc. Dias—Ele enfatizou— dormiu por 3 dia, e não me chame de macacão. Esse não é meu nome.

Ele falou mal humorado, mas Nóc sabia que ele não se importava de verdade que ela o chamasse de macacão, mas ambos achavam aquele fingimento algo tão divertido quanto o próprio gracejo e mantinham um acordo silencioso em relação a isso.

Nóc se surpreendeu ao saber que dormira por tanto tempo mas antes que pudesse dizer algo, sobre isso Helm começou a tossir, e o peito de Nóc se apertou de repente, desde que acordou ainda não havia tido tempo ou coragem para perguntar se as lágrimas de antemar haviam funcionado, e antes que sequer tivesse tempo de fazer qualquer coisa a tosse se intensificou, a garota levou um pano até a boca e quando o tirou dali ele voltou vermelho, e um filete de sangue escorria da boca dela.

—Helm!—Nóc falou alarmada se colocando de pé em um salto e sentiu seu mundo girar quando sua perna machucada tocou o chão, sua visão turvou imediatamente e a dor estava ali novamente, sentiu seu corpo se projetar para frente como se já não tivesse controle sobre ele, e só não caiu porque Hottari a havia segurado pelo braço. Quando se equilibrou novamente segurando-se no braço do símio a tosse de Helm já havia minguado novamente, e logo parou.

—Ta tudo bem, Nóc, eu já to melhor, foi só uma recaída. O tio Hott disse que é normal, e que eu vou ficar boa logo.

Helm disse sorrindo e limpando o sangue que escorria pela sua boca, Nóc logo sentiu as lágrimas brotando em seus olhos, então soube que valeu a pena tudo pelo que passou, o remédio havia funcionado. Nóc soube novamente que amava aquela criança, pensou em abraçá-la mas sentiu a mão de Hottari, a guiando de volta até a cama e se permitiu ser levada por ele, teria tempo para abraçar helm quando estivesse melhor, quando as duas estivessem melhores

—Sim ela vai ficar bem— Hottari falou, ajudando Nóc a subir novamente na cama, e logo se abaixou para ficar na altura dos olhos de Helm e disse sorrindo para ela—Pequena Helm, se importa de nos dar licença por alguns instantes? Tenho que conversar com sua amiga teimosa em particular.

—Tá bom, tio Hott—Helm falou para o símio e Nóc não conseguia deixar de ficar surpresa com aquilo, Helm nunca havia se apegado tanto a nenhuma das outras pessoas da toca do lobo, a única pessoa que Helm tratava de maneira semelhante era a própria Nóc, mas era de se esperar apesar de toda— Tchau Nóc.

A garota disse pulando em cima da cama com cuidado para não machucar sua amiga debilitada e antes de sair abraçou Nóc, pousando a cabeça sobre o peito dela por alguns instantes, e Nóc a abraçou de volta, sentiu seu peito se aquecer com aquele abraço sem conseguir se lembrar de nenhuma ocasião em que se houvesse se sentido tão feliz.

—Obrigado Nóc.

A garota sussurrou olhando nos olhos de Nóc que acariciou os cabelos dela novamente e sorriu em resposta com os olhos novamente marejados, finalmente em paz por ter salvado aquela vida que ela prezava tanto e não encontrou palavras para responder. então a garota desceu da cama e correu em direção a porta sem dizer mais nada.

—Não tão rápido pequena Helm— O símio falou E andou na direção dela com a mão vazia estendida e se abaixou apoiado no cajado para olhar a pequena elfa nos olhos—ia se esquecer disso?

E Nóc observou quando helm se aproximou da mão e não pode deixar de sorrir ao se lembrar de sua infância quando Hottari frequentemente fazia o mesmo com ela.

—Mas não tem nada aí?

A garota disse com a convicção que só as crianças têm.

—Ah não? Olhe de novo pequena Nóc?

E então da palma da mão de Hottari brotou um pequeno botão rosado que se abriu em uma magnífica flor de um tom de rosa vivo que era tão destoante do resto do ambiente cinzento que parecia iluminar a sala só com sua mera presença ali. E Nóc pode ver o rosto maravilhado de Helm quando ela estendeu a mão para a flor, mas o símio simplesmente fez um floreio com a mão e tirou do alcance da pequena.

—Hã,hã,hã, é uma flor delicada—Ele disse colocando de volta ao alcance dela que observou maravilhada—assim como você pequena Helm.

O símio falou colocando gentilmente flor no cabelo de Helm. passou suavemente as costas dos dedos pela bochecha da criança e por fim falou.

—Uma flor para um flor—Sorrindo para a pequena. que se limitou a rir, com os olhos brilhando—cuide bem dela, é sagrada para meu povo. Posso confiar em você pra isso?

—Pode!

Helm falou decidida sorrindo ainda mais.

—Então vá brincar— E a garota desapareceu correndo pelos túneis —Mas não nos esgotos!

Hottari completou sorrindo olhando para a porta, e ali ficou por alguns segundos, então fechou a porta e o sorriso dele murchou quando olhou para Nóc.

—Ela não está bem, Nóc.

Ele disse com pesar, mas sem rodeios como é típico de seu povo, e cada palavra foi como uma facada no coração de Nóc, que nem conseguia encontrar palavras para se expressar.

—Mas as lágrimas de Antemar, eu li em um tomo que elas resolveriam.

—Especulações de estudiosos arcanos que certamente nunca puseram as mãos em lágrimas de Antemar—O Vanara disse colocando a mão no ombro de Nóc—Sinto muito, se eu estivesse aqui eu poderia lhe dizer que isso não iria funcionar, apenas atrasa o inevitável Nóc, e não estou dizendo que isso é ruim, com toda certeza ela está sentindo muito menos dor agora, Mas a tosse vermelha não tem cura Nóc, pelo menos não uma cura que tenhamos descoberto, eu diria que as lágrimas de Antemar talvez tenham comprado para Helm mais um ou dois meses de vida.

Nóc sentia a raiva fermentando dentro de si, a frustração por não poder fazer nada, a frustração que vinha sentindo desde que descobrira que Nóc tinha a tosse vermelha, uma doença que pode surgir da noite para o dia, não existe nenhum consenso sobre o que causa a doença e tão pouco existe uma cura para ela, só se sabe que ela ataca o sistema respiratório fazendo com que a pessoa comece a tossir sangue, e em pouco tempo a tosse aumenta mais e mais, até que a pessoa comece a tossir pedaços do próprio pulmão, então já não há esperança.

—Foi tudo em vão, matei aqueles homens! Para nada!

Nóc disse batendo a mão com o punho fechado contra a perna e ignorou a dor, só sentia a raiva e as lágrimas quentes brotando em seus olhos e nublando sua visão.

—Para nada não, minha filha—O Símio disse limpando a lágrima da bochecha de Nóc suavemente—Pensei que havia lhe ensinado melhor do que isso, nenhum ato feito em nome do amor é em vão.

—Mas eu não pude fazer nada—Nóc falou e sentia a angústia queimar dentro de si a consumindo por dentro, sentia ódio dos homens, dos deuses, de sí mesma e do próprio mundo onde viviam— Que tipo de deuses fariam uma criança como Helm passar por isso Hott? ela nunca fez mal a ninguém, nem sequer viveu o suficiente para ver o mundo além dessa cidade.

E de repente Nóc sentiu Hottari abraçá-la, e era uma criança sendo consolada por ele novamente, enterrou seu rosto nos pelos macios do ombro do símio, se entregou aquele momento, se permitiu descarregar toda a raiva e tristeza que estava carregando desde que descobriu o estado de Nóc e ele apenas a abraçou de volta sem dizer nada e permitiu que ela chorasse por algum tempo, até que finalmente se afastou de leve dela para olhá-la nos olhos e disse.

—Nóc, nem sempre as coisas acontecem por um motivo. Os deuses nos deram a vida, mas também nos deram a liberdade de traçarmos nosso próprio destino, e com a liberdade vem a aleatoriedade e o perigo. Os deuses não tem favoritos Nóc, a morte vem para os bons tanto quanto para os maus, se você se cortar sangrará independente de sua índole ou do Deus a quem você serve.

Hottari fez uma pausa longa e acariciou de leve a mão de Nóc antes de continuar.

—E se nós nossos triunfos e nossos vitórias independem dos deuses, jovem Nóc, só nos resta aceitar uma dura verdade por mais cruel e difícil que ela seja, Nossos fracassos e as mazelas que nos afligem também não são causadas por eles, por mais fácil que seja cair na armadilha de acreditar que eles são os culpados. Devemos aceitar que nem sempre teremos alguém para culpar. E talvez essa seja a real crueldade da vida, gostaria de poder lhe apontar um grande mau para você abatê-lo com seu arco e levar a maldade do mundo embora junto com ele. Mas as coisas não funcionam assim jovem Nóc, a maldade sempre existirá, mas a bondade sempre estará lá para fazer frente e ela, coisas ruins acontecem com pessoas boas, e coisas boas acontecem a pessoas ruins, é fácil se deixar levar nesses momentos e pensar que o destino é injusto, mas você não deve acreditar nisso Nóc, o destino é tão neutro quanto ele pode ser e também não liga pra concepções mundanas como bondade e maldade,e talvez isso lhe soe triste e injusto.

— Soa mesmo—Nóc respondeu sem conseguir aguentar mais daquele discurso, com a fúria ainda fervilhando dentro de sí, sentia raiva até mesmo de Hott por tentar fazê-la se acalmar enquanto Helm estava mais próxima da morte a cada segundo—Está me dizendo para sentar e esperar Helm morrer porque a vida é assim?

—Não jovem Nóc, estou dizendo que se os deuses não controlam nosso destino, então cabe a nós controlá-los, e que se você quer realmente salvar essa garota, pare de chorar e vá fazer alguma coisa, pois o destino não liga para a inocência da garota ou a bondade dela, e o destino não fará nada para salvá-la, mas você sim. Nóc e é por isso que será você a salvá-la. ao invés de esperar que o destina faça isso por você, pois a solução não cairá do céu.

—Mas como? As lágrimas de Antemar eram nossa última chance—Nóc protestou— pesquisei por semanas nos livros das maiores bibliotecas da cidade alta.

—Ora, você não olhou nos livros certos, e a leitura também nunca foi seu forte.

Hotarri disse tirando um livro da bolsa dele que estava na cômoda no outro canto da sala, e o atirou em cima da cama sorrindo para Nóc, que leu o título, o tomo do sol. Era um livro grosso com uma capa de couro vermelho escuro, a capa possuía uma moldura de bronze e um sol metal dourado no centro, Nóc sabia que esse era o tomo sagrado da fé de apollion, o deus venerado no vale do sol.

—Você não disse que os deuses não podem nos ajudar?

—Ora e continuo dizendo, por isso sugiro que leia atentamente Nóc, se bem que você já deveria saber do que eu estou falando. A tosse vermelha só foi curada uma vez na história Nóc e foi exatamente aqui, nesta cidade que isso aconteceu.

Hottari abriu o livro e apontou para uma iluminura que mostrava Merenor Gryfindel o fundador da cidade, enfermo ao lado de Tandriel um dos mais poderosos entre os sacerdotes que foi seu braço direito, e nessa imagem ele entregava o um colar ao rei moribundo, então a compreensão veio até Nóc, se culpou por não ter pensado nisso antes, mas o alívio partiu tão rápido quanto chegou, ao se lembrar do lugar onde repousava seu prêmio.

—O amuleto de Apollion? Você não pode estar sugerindo que os templários vão nos permitir usar o amuleto de Apollion pra curar uma órfã pobre. Eles já recusaram ele até mesmo a reis, Hott você sabe disso tão bem quanto eu.

—Claro que eles não o darão ele a você Nóc, mas achei que seu negócio fosse justamente esse. A sombra da cidade alta, aquela que vai a qualquer lugar sem ser vista—Ele disse levantando os braços de forma teatral—Não é assim que te chamam? se bem que depois de sua última missão o mastodonte da cidade alta talvez fosse mais apropriado. Pegar coisas que as pessoas não estão dispostas a dar, não é isso que você faz? Esse amuleto deveria pertencer ao povo Nóc, mas desde a guerra civil fé o tem mantido em seu poder, usando-o apenas para seus próprios interesses, já está na hora de ele voltar a servir seu real propósito, e ajudar aqueles que mais precisam, se você quer curar Helm esse é o único jeito

Hottari disse se empertigando e olhando para Nóc com seus olhos castanhos faiscando.

—Então o que será jovem Nóc. Aceitará o destino da pequena Helm, ou fará algo para mudar isso?

E Nóc sorriu.

—Só conserta minha perna logo.

—Foi o que pensei.

Capítulo 3: Um plano perfeito.


 

Nóc andou até ao redor da mesa, se esforçando para não demonstrar o desconforto que sentia em relação sua perna, que ainda não havia cicatrizado totalmente. Olhou para as pessoas que estavam ao redor da mesa, confiava em cada uma delas. Eram sua verdadeira família, O alto escalão do Clã Andanoite, era um clã de desajustados e indesejáveis, a maior parte era formada por orfãos, pessoas que não se encaixavam em suas famílias, ou pessoas que foram expulsas de seus lares como a própria Nóc, e para Nóc eles eram amigos mais verdadeiros do que qualquer vínculo de sangue que ela já teve. Todos esperavam pacientemente para ouvir o que a sua líder tinha a dizer. 

 

—Fico feliz de ver a todos aqui, Hottari chegará logo mas ele já conhece o plano, então acho que já podemos começar—Nóc falou sorrindo e olhou para todos que estavam ao redor da mesa novamente— Temos um novo trabalho a fazer, mas não acho que vocês irão gostar muito dele.

 

—Raramente gostamos, Nóc.

 

Mackey falou com sua voz serena, ele era um gairan de floresta velha, sua pele parecia ser feita de madeira escura, musgo crescia aqui e ali em sua face e vegetação adornava sua cabeça e lhe caia os ombros como se fosse cabelo de fato, assim como longos chumaços de vegetação fina e emaranhada com aparência seca lhe caiam do queixo como se tivessem pretensão de ser uma barba, usava vestes simples, um robe negro cobria todo seu corpo, seus olhos brilhavam com uma luz verde, e mesmo estando sentado mantinha seu cajado junto a sí apoiado no chão ao seu lado, era um cajado de madeira que parecia ser feito de raízes trançadas em espiral,  na ponta as raízes envolviam um cristal translúcido de coloração arroxeada, que emitia uma luz fraca igualmente roxa, olhando através do cristal o espaço pareceria distorcido, e minúsculas estrelas pareciam brilhar dentro dele, acendendo, apagando e acendendo novamente em lugares diferentes. O gaiaran então riu gentilmente e completou.

 

—Mas geralmente no final acaba valendo a pena.

 

O mago falou e quando concluiu ficou rindo baixinho.

 

—Já começou a interromper a Nóc de novo, velho caduco? deixa ela pelo menos terminar a primeira frase sem você se meter.

 

Dessa vez quem falou foi Flyn, um humano de modos rudes e riso fácil, ele estava com os pés escorados em cima da mesa de pedra e ria do próprio gracejo enquanto jogava a sua adaga de uma mão para a outra fazendo firulas, um hábito que ele sempre teve, mas que possui uma tendência a se intensificar quando Jezabel está por perto, como era o caso.

 Flyn tinha a pele branca e olhos verdes, seus cabelos castanhos lhe caíam pelos ombros com uma leveza sobrenatural, e de acordo com o que os outros membros dos andanoite diziam ele cuidava mais do cabelo que qualquer mulher do clã, em seu rosto sempre mantinha uma barba rala, extremamente bem aparada, vestia uma camisa azul marinho de tecido grosseiro, cujos primeiros botões invariavelmente ele mantinha desabotoados, duas espadas longas e finas pendiam de suas costas em bainhas de couro negro.

 

—Velho caduco, humpf! Sinceramente não entendo por que esse traste tem que vir as reuniões, estariamos melhor servidos com um ladrão de rua qualquer—Mackey falou balançando a cabeça negativamente—nenhum ladrão que se preza deveria ser tão escandaloso ou ter um cheiro tão aberrante, qualquer um sabe que você está chegando mesmo estando a quilômetros de distância.

 

Todos riram, exceto o próprio Mackey.

 

—Ora velhote, não leva pro lado pessoal—Flyn falou dando um tapa nas costas de Mackey que quase derrubou o cajado— Se quiser te empresto um pouco do meu perfume, Assim não precisamos aguentar esse cheiro de bolor.

 

Mackey fechou a cara ainda mais mas antes que pudesse responder Jezabel disparou na frente.

 

—Por favor Flyn, não empresta o perfume pra ninguém, apenas um homem com cheiro de prostituta na mesa já é o suficiente.

 

Jezabel falou isso com seu cinismo habitual, ela era uma mulher com sorriso malicioso e de pele escura, seus olhos eram verdes, vestia roupas de cor escarlate, costuradas com fio de ouro e em sua cabeça usava um chapéu igualmente escarlate com uma longa pena branca, debaixo do chapéu seus cabelos castanhos encaracolados desciam pela sua cabeça em uma cascata de cachos, e no meio deles algumas tranças rígidas conhecidas como Játar, bastante populares entre o povo de Rajhar da qual Jezabel descende.

 

Flyn estava prestes a responder a provocação de Jezabel quando Hottari entrou na sala e bateu o bastão no chão mergulhando a sala em um silêncio sepulcral instantaneamente.

 

—Ótimo, vejo que já estão todos aqui, e a reunião está transparecendo a seriedade de sempre posso ver—Hottari disse quebrando o silêncio e se sentou na cadeira a direita de Nóc, olhando para as pessoas ao redor da mesa com um olhar severo—Nóc, pode prosseguir com sua explicação.

 

A tensão no ambiente era palpável, todos na sala nutriam um profundo respeito por Hottari, até mesmo Flyn que não nutria respeito por praticamente nada, Nóc gostava do clima animado de sua alta cúpula e se divertia bastante nas reuniões mas dessa vez era bom que Hottari estivesse ali para acalmar os ânimos.

 

—Obrigado Hott— Noctivora disse se colocando de pé e tirando um pergaminho da bolsa de couro que trazia consigo—Senhores, temo que o serviço dessa noite pode ser bem mais complicado que o habitual.

 

—Já era de se esperar, já que você chamou todos nós. A última vez que você pediu que nós todos viéssemos aqui foi para sequestrar o duque de montanhalta. 

 

—E dessa vez o serviço é ainda mais perigoso— fez uma pequena pausa e por fim completou— Esse é nosso alvo.

 

Nóc falou desenrolando o pergaminho em cima da mesa, e todos se debruçaram curiosos para ver do que se tratava Mackey foi o primeiro a se manifestar e soltou um som estranho, que Nóc não conseguia descobrir se era um riso ou um gemido. Jezabel ficou em silêncio encarando pensativa  e Flyn logo começou a rir.

 

—Você deve estar louca. 

 

Flyn disse ainda rindo

 

—Nóc, você não pode estar falando sério, o amuleto de Apollion? Você tem noção de onde ele está? Nós nunca chegaremos até ele.

 

Mackey falou passando a mão pela sua barba de nervosamente. E Jezabel apenas se sentou e ficou em silêncios enrolando o dedo nas mechas  de seu cabelos e olhando fixamente para Nóc que permanecia de pé com uma expressão obstinada até que sorriu e respondeu.

 

—Eu sei onde ele está Mackey, e todos vocês também sabem, A abadia de sacra colina, estou decepcionada, esperava que vocês se fossem se animar com o nosso prêmio?

 

—Que prêmio—Flyn falou de com sua voz sarcástica—A morte? ou será que se refere a aproveitar o resto de nossas vidas com torturas e encarceramento

 

—Tenho que concordar com Flyn dessa vez, Nóc— Mackey falou enquanto remexia sua bolsa em busca de algo—Até mesmo para nós isso é suicídio.

 

Então Jezabel quebrou seu silêncio e disse de forma enfática

 

—Vocês poderiam parar de borrar as calças pelo menos uma vez escutar o que nossa líder tem a dizer. Prossiga Nóc, eu quero saber do que se trata.

 

—Obrigado Jez. Como eu dizia, esse é nosso alvo, o amuleto de Apollion, imagino que todos aqui saibam do que se trata.

 

—Claro que sim.

 

Mackey falou de forma enfática.

 

—Obviamente.

 

Concordou Jezabel.

 

—Nem idéia—Flyn disse de forma displicente—Só sei que é o colar que o líder da ordem do sol vermelho usa o Demonimus.

 

Jezabel levou a mão a própria face Hottari apenas sacudiu a cabeça em desaprovação. E antes que Nóc pudesse corrigir Flyn Mackey disparou na frente.

 

—HERONIMUS—corrigiu ele—E é a ordem do sol rubro, além disso não é um colar, não se trata de uma bijuteria qualquer que você rouba nos becos imundos que você anda.

 

Mackey e Flyn eram completos opostos, enquanto mackey estudou a vida inteira acumulando todo tipo de conhecimento, flyn cresceu nas rua, enquanto Flyn que na época não passava de um adolescente perdeu sua família em um incêndio e foi encontrado por Nóc, foi mackey que encontrou Nóc se oferecendo para entrar no bando ao ouvir falar de sua fama.

 

—Tão tu faz, você bem que podia explicar as coisas direito ao invés de só ficar gritando pra mostrar o quão sabichão você é.

 

Mackey respirou fundo olhou para Nóc que apenas meneou com a cabeça.

 

—Preste atenção então, não quero perder tempo de reunião com isso, já temos tarefas o suficiente além de lhe explicar coisas que você já deveria saber e além disso…

 

—Mackey—Advertiu Nóc—A explicação, não comecem tudo de novo.

 

—Sim Nóc, perdão.  Pra começar a ordem do sol RUBRO foi criada por Merenor o homem que fundou a cidade, ele a criou para serem protetores da cidade e da fé de Apollion o deus a qual ele servia e o deus cultuado aqui na cidade. 

 

—Até aí tudo bem.

 

—Ótimo, depois de alguns anos liderando a cidade Merenor, ficou terrivelmente doente, a tosse vermelha segundo alguns dizem, ele parecia estar para morrer, mas seu braço direito, um sacerdote de Apollion chamado Tandriel não aceitou que seu rei fosse ser levado tão cedo, ele acreditava que Merenor ainda tinha muito o que fazer. 

 

—Certo.

 

Concordou Flyn

 

—Então acreditando nisso ele rezou. Por 12 dias e 12 noites ele rezou, sem parar pra comer ou dormir.

 

—Que besteira, ele teria morrido.

 

Flyn falou.

 

—Talvez—Mackey disse respirando fundo novamente e Nóc podia ver que ele realmente estava se esforçando—Mas eu não faço as porcarias das lendas, apenas estou te contando o que está escrito. Posso continuar?

 

—Vai lá.

 

—Ótimo. Onde eu estava? Ah sim, depois de rezar por 12 dias e 12 noites ele voltou até o rei que já estava a beira da morte, e lhe deu um presente.

 

—O colar de Apollion.

 

Flyn disse incerto.

 

—Exato, Tandriel rezou a Apollion esse tempo todo pedindo para que lhe desse a cura para os males que afligiam o rei, e ele conseguiu. O colar era capaz de curar qualquer doença, qualquer mazela, poderia até mesmo manter afastada a morte natural segundo as lendas, porém o próprio Tandriel não resistiu ao ritual necessário para criar tal artefato e acabou por falecer assim que deu o colar ao rei.

 

—Não faz sentido, era só ele colocar o colar, e ele estaria curado.

 

—Não funciona dessa forma Flyn— Nóc explicou pacientemente—o colar não é como uma poção de revigoramento qualquer, você não pode simplesmente tomar e se sentir melhor, ele realmente cura a pessoa mas ele não faz isso instantaneamente, se ele tivesse utilizado o colar o próprio Merenor poderia não ter suportado tempo o suficiente e teria morrido.

 

—Exatamente.

 

Mackey concordou.

 

—Ah, então até que faz sentido. Mas por que a gente não usou esse colar milagroso ai sei lá quando o último rei morreu tava morrendo com aquela doença nas tripas?

 

—Já vou chegar lá. Depois disso Merenor passou a usar o colar e em menos de um mês estava curado então ele decretou que o colar deveria ficar na abadia de Sacra Colina sob proteção do Prior, que deveria usar o colar em prol do povo e do reino, para salvar os que não podiam ser salvos, curar os que não podiam ser curados.

 

—Como vários amigos meus na Travessa dos ratos morreram sem nenhuma ajuda, já imagino que algo não saiu como o Gryffindor queria.

 

—De fato não saiu—Completou Hottari tomando a palavra— Vários séculos depois no começo da era da Luz, o prior conhecido como Benevir morreu, e então iniciou-se um conselho das chamas, para decidir quem seria o novo prior, mas o conselho discordava sobre quem deveria ser o sucessor, e não só sobre isso um grupo dentro do conselho era extremamente ortodoxo em relação aos textos sagrados enquanto outro defendia a flexibilização da fé. então houve uma cisão na ordem do sol rubro. E um novo grupo se formou.

 

—A ordem do sol negro.

 

Arriscou Flyn.

 

—Exato. 

 

—Sempre quis saber de onde surgiram esses malucos.

 

—Como é possível que você more nessa cidade a tanto tempo e não saiba dessas coisas?

 

Jezabel quis saber.

 

—Não ensinam essas coisas na travessa dos ratos minha cara, no maximo ensinam onde onde achar os vira-latas mais carnudos pra comer, e como fazer a sopa render mais.

 

—Que nojo—Jezabel falou— Mas prossiga Hot.

 

—Obrigado. Dito isso a cisão causou uma guerra cívil na cidade toda que culminou com a tentativa de invasão da abadia de Sacra colina, quando a ordem do sol negro tentou roubar o amuleto de Apollion acontece, que eles quase mataram o prior Heronimus durante o ataque.

 

—Peraí, Prior Heronimus? quando foi isso? 

 

—Uns  120 anos atrás.

 

Nóc respondeu.

 

—Achei que o prior fosse um humano como é possível que o desgraçado esteja vivo até hoje?—Flyn perguntou bastante chocado mas logo ele mesmo entendeu—O desgraçado tá com o colar não é?

 

—Sim,  depois de ele ser quase morto as forças do sol rubro sobrepujaram o sol negro e os expulsaram da abadia, desde então eles tem sido uma organização secreta na cidade e eventualmente atacam aqui e alí, mas nunca voltaram a atacar a ordem do sol rubro.

 

—Tá tá, mas e o colar?

 

—Heronimus estava a beira da morte então usou o colar para se recuperar—Respondeu Mackey— porém dizem que ele nunca mais foi o mesmo depois do ocorrido, se tornou paranóico e via membros da ordem do sol negro em cada sombra, todos eram assassinos em potencial para ele, então ele decretou que o colar deveria ser mantido em segurança e passou a utilizar o colar ele mesmo. Sem permitir que mais ninguém o usasse desde então.

 

—Ta e por que diabos ninguém deu um chute na bunda desse velhaco e pegou o colar de volta?

 

Mackey levantou a mão como quem pede paciência e tirou uma cuia de madeira da bolsa e a encheu com ervas aromáticas e água quente antes de responder, a água parecia deixar o cantil dele fria e começar a ferver em pleno ar antes de encher a cuia, tomou um longo gole e continua a falar.

 

—Por que o próprio Merenor decretou que quem possui autonomia sobre o colar e sobre como ele deve ser usado é o prior, e nenhum rei teria coragem de mandar atacar o líder religioso da fé de Apollion, ainda mais se tratando de um que é conhecido por ser o herói que destruiu a ordem do sol negro.

 

—Tá bom, então o rei não é burro o bastante para isso—Flyn fez uma pausa—Mas a gente é?

 

—Basicamente isso.

 

—Eu topo.

 

Flyn disse sem hesitar.

 

—Você nem ouviu meu plano ainda. 

 

Nóc falou.

 

—É mas eu sei que vai ser bom, e esse colar realmente parece útil, além disso todos nós sabemos porque você quer ele e nenhum de nós quer ver a pequena daquele jeito por mais tempo, já vi crianças morrerem, não quero ver de novo

 

—O frutinha dessa vez tem razão, sabemos que você não nos colocaria em risco se não tivesse um bom plano, você nunca fez isso antes, e acho que é uma coisa pela qual vale a pena se arriscar.

 

Jezabel falou decidida.

 

—E quanto a você Mackey?

 

Nóc indagou. e observou enquanto Mackey tomava um longo gole do líquido fervente que ele chamava de chá dos pampas.

 

—Eu a escolhi para ser minha líder Nóc, não faria isso se não confiasse em você. apenas diga, qual é o plano e vamos tentar deixá-lo bom o bastante para que nenhum de nós morra no processo.

 

Nóc sorriu, sabia com eles ao seu lado ela teria uma chance, uma chance de salvar Helm. 

 

Passaram o resto da tarde tratando dos detalhes do plano e por fim se dispersaram para começar os preparativos. 

 

Eles iriam invadir o centro do poder da fé de Apollion ,o segundo lugar mais bem protegido da capital, atrás apenas o castelo do grifo, a sede da família real, e fariam isso juntos.






 

Capítulo 4: Um mundo melhor.


 

Nóc saiu da grande sala de reuniões da toca do lobo com a cabeça latejando e andou pelos corredores estreitos que a levariam até seus aposentos. 

A toca do lobo era como chamavam o esconderijo do clã Andanoite, no passado já foi um posto de guarda construído abaixo da cidade para lidar com os grupos criminosos que viviam nos esgotos, porém com o tempo os próprios criminosos tomaram o lugar, mas todos foram mortos em uma investida da guarda da cidade, e então já não havia criminosos nos esgotos para combater,  o lugar acabou sendo abandonado por ser considerado maldito, devido ao número de mortes que ocorreram ali, porém Nóc não acreditava em tais superstições e ficou mais do que feliz em reclamar o lugar para o clã Andanoite.

A toca do lobo era construída no subsolo da cidade, perto dos quartéis de milícias, era um grande forte feito quase totalmente de pedra, uma instalação militar, portanto, construída para a utilidade e não para o luxo, possuía duas salas de reuniões, arsenal, forja, além de amplos dormitórios e várias portas secretas utilizadas para vigiar os túneis dos esgotos, além disso a própria Nóc tratou de implementar junto aos outros membros do clã diversas saídas que os levariam para os mais diversos pontos da cidade, facilitando muito o trabalho deles, a toca do lobo era o esconderijo perfeito para os andanoite, mas para todo aqueles que não estivessem acostumados com a arquitetura confusa o lugar pareceria apenas um labirinto. 

 

A excentricidade da obra se devia ao fato de que foi construído posteriormente no subterrâneo tendo que se adaptar as construções já existentes, criando a necessidade de longos corredores serpenteantes, salas com angûlos estranhos, e uma arquitetura no mínimo confusa.

 

Nóc andava a passos largos e já podia ver a porta de seus aposentos quando sentiu a mão de Hottari pousar em seu ombro, se virou para olhá-lo nos olhos e falou.

 

—Como ela está? 

 

—Piorou um pouco essa manhã—Quando ele disse isso Nóc sentiu novamente seu coração se apertar— não estava se sentindo bem para deixar a cama, então lhe fiz uma infusão de ervas para que dormisse durante a tarde.

 

—Tudo bem, vou ir ver ela. E obrigado Hott, não sei o que faria se não fosse você.

 

—Ainda estaria tentando comer ortiga naquela floresta como quando te encontrei—O símio falou com um sorriso triste—Agora vá ver a criança, ela sentiu sua falta hoje.

 

Nóc assentiu antes de se despedir de Hott, e empurrou a pesada porta de madeira do quarto que dividia com Helm.

Este aposento que uma vez fora destinado ao capitão da guarnição que devia patrulhar os esgotos,  era de longe o maior quarto da toca do lobo e um dos poucos quartos em todo o local que parecia minimamente bem planejado, uma grande cama se encontrava junto a parede oposta do quarto e ao lado dela uma cama menor onde Helm geralmente dormia. Duas escrivaninhas lado a lado encontravam-se encostadas na parede oeste cheias de mapas, tinteiros, e penas além de diversos pergaminhos enrolados em um cesto ao lado da escrivaninha, no outro canto do quarto havia um grande guarda roupa, e ao lado dele fixados nas paredes estavam os suportes de onde pendiam os equipamentos de Nóc, sua aljava, seus suprimentos alquímicos, o cinto da onde pendiam adagas, a bainha com sua espada curta e o arco de sua mãe, a única coisa que lhe foi permitido levar de sua casa antes do exílio.

 

Nóc passou reto por tudo isso e se dirigiu até a cama de Helm se esforçando ao máximo para não acordá-la, mas antes que chegasse até a cama dela Nóc pode ouvir sua voz fraca.

 

—Nóc, é você?

 

A menina tentou dizer em meio a uma tosse baixa, falou isso enquanto se recostava para ver quem havia entrado no quarto.

 

—Sim Helm, sou eu—Nóc disse se posicionando ao lado da cama—Como você está hoje ratinha?

 

Nóc disse em um tom doce colocando a mão na testa de Helm para ver a temperatura e acariciando o rosto dela.

 

—Com dor—Helm falou se esforçando pra sorrir e tirou a mão de debaixo dos cobertores para dar um tapinha de leve no braço de Nóc—e não sou ratinha.

 

Helm disse tossindo baixinho e completou.

 

—Já te disse isso.

 

A pequena sorriu olhando para Nóc e segurou mão dela. 

 

—Ora e que outro nome você daria para alguém do seu tamanho que vive brincando nos esgotos?

 

Helm riu e tentou responder mas a tosse veio mais forte dessa vez e não permitiu que ela falasse. Nóc sentia o corpo da garota tremer enquanto segurava a mão dela, e cada vez que ela tossia percebia a importância da missão que estava para começar, poderia salvar Helm e tantas outras iguais a ela, só precisava ser bem sucedida. Nóc viu que helm tateava na cômoda ao lado de sua cama em busca de seu lenço.

 

—Aqui Helm.

 

Nóc falou passando lenço para a menina, o lenço estava úmido, úmido de sangue, e manchado de um vermelho tão vivo que ninguém poderia adivinhar que ele um dia já foi branco.A tosse mingou aos poucos. e Helm voltou a falar.

 

—Ratinha não.

 

Ela falou rindo com a voz fraca, e Nóc sentiu os olhos encherem de lágrimas e concordou.

 

—Ratinha não. 

 

Nóc disse enquanto ajudava Helm a se posicionar melhor na cama, sentou-se ao lado dela e apoio a cabeça da criança em seu peito, enquanto acariciava os cabelas dela.

 

—Conseguiu dormir hoje a tarde?

 

—Um pouco, só que eu ficava acordando com dor. mas desde que você me trouxe a cura já estou bem melhor. 

 

Nóc engoliu em seco mas soube que precisava contar para ela, não podia esconder aquilo.

 

—Helm.

 

Nóc falou olhando nos olhos da menina, mas não conseguia completar a frase.

 

—A cura não vai funcionar não é?

 

Nóc tento responder mas as palavras não saiam de sua garganta, como ela poderia dizer para uma criança que pensava estar curada que novamente estava com seus dias contados, no fundo Nóc sabia que aquilo machucava mais a ela do que a própria Helm, ela podia ser apenas uma criança mas era mais forte que Nóc, e sempre esteve consciente de sua condição,

 

—Tá tudo bem—Helm falou passando seus pequenos dedos pela maçã do rosto de Nóc—Eu meio que já sabia, escutei você falando com o tio Hott.

 

Nóc sentiu seus olhos se encherem de lágrimas e tentou falar algo, tentou consolar a criança, mas sabia que era ela quem na verdade precisava de consolo. Helm se levantou do colo de sua protetora e a olhou nos olhos, com uma única lágrima escorrendo pela face rosada.

 

—Tá tudo bem—A menina repetiu limpando a lágrima de nóc com a manga de sua blusa—Eu sei que você vai dar um jeito, eu ouvi você dizer isso. Se você chorar eu vou chorar também.

 

A menina completou já chorando,  e Nóc sentia seu peito queimar de tristeza, angústia, amor e felicidade tudo ao mesmo tempo, e puxou Helm para junto de si a abraçando como nunca havia abraçado antes e disse o mais alto que pode, apesar de ter saido apenas um sussurro.

 

—Eu vou salvar você Helm.

 

—Eu sei que vai—A menina disse ainda chorando um pouco e se aninhou novamente no peito de Nóc que a envolveu com os braços e lhe depositou um beijo suave na testa— Eu te amo Nóc.

 

—Eu também minha Rá….

 

—Ratinha não.

 

Helm corrigiu.

 

—Ratinha não.

 

Nóc respondeu se esforçando para parar de chorar. e por alguns minutos as duas apenas ficaram em silêncio abraçadas no escuro apenas com os sons da toca do lobo e das eventuais fungadas, de quem está tentando deixar a tristeza para trás. Helm finalmente quebrou o silêncio com um bocejo e disse com voz sonolenta.

 

—Nóc me conta uma história?

 

—Que história?

 

—A da garota de olhos azuis.

 

—De novo essa?

 

Nóc perguntou, mas já sabendo que Helm insistiria.

 

—Eu gosto dessa.

 

Helm argumentou como sempre fazia

 

—Tá bom—Nóc falou apagando a vela ao lado da cama e ajustando sua posição para deixar Helm confortável—Pronta?

 

—Sim.

 

A criança concordou com o mesmo ânimo na voz que demonstrou quando ouviu essa história pela primeira vez, Nóc calculava que contagem de vezes já estava para lá de vigésima, mas Helm insistia que foram menos de dez. Nóc tomou fôlego para começar a falar e limpou a garganta enquanto Helm se aninhava no colo dela encarando-a, ansiosa pelo começo da história.

 

—Muitos anos atrás, no começo da era da Luz houve uma noite em que a lua sumiu dos céus—Nóc e Helm disseram essas primeiras palavras em uníssono—E nessa noite, na cidade de prata nasceu uma menina de olhos azuis, sua mãe morreu ao lhe trazer ao mundo, e seu pai teve raiva da criança que supostamente trazia consigo uma maldição, pois para os Helenar, o elfo nascido em uma noite de eclipse, nasce sem a luz da deusa Diana, a mais importante deusa em que eles acreditam.

 

Nóc fez uma pausa para se certificar de que Helm ainda estava acordada, e como esperado ela ainda estava, então continuou a história.

 

—Os Helenar que nascem em noites de eclipse por tradição são exilados da cidade ainda bebês junto com suas mães, e só podem voltar quando provam ser dignos do amor de Diana. Porém aquele bebê já não possuía mãe, então os oráculos de prata, aqueles responsáveis por traduzir a vontade dos deuses aos mortais, decretaram que a criança poderia viver entre os elfos, até atingir 12 anos de idade, e só então seria exilada sozinha. O pai da criança de olhos azuis porém nutria um remorso enorme por sua filha, e lhe criou sem qualquer amor, era incapaz de perdoá-la pelo pecado de ter matado a sua mãe ao nascer, e com o passar dos anos conforme a criança crescia, ela lembrava a ele cada vez mais a imagem da mulher que ele havia perdido. 

Sem conseguir suportar aquela situação, ele decidiu que não aguentaria até a criança ter 12 anos e a mandou embora da cidade de prata quando tinha apenas seis anos, lhe deu apenas o arco que pertenceu a sua mãe e uma aljava cheia de flechas. se despediu dela dizendo que ela não tinha culpa do que aconteceu e que esperaria pela volta dela a cidade de prata quando ela se provasse digna e ao reconquistar o amor da deusa, pediu desculpas a ela pelo jeito que a tratou por todos esses anos e disse que quando ela voltasse ele também já teria se tornado digno de ser o pai que ela merecia.

 

Nóc parou novamente para tomar fôlego e viu que Helm se agitou esperando pelo resto da história.

 

—A criança sem luz então vagou pelas florestas sem saber como sobreviver de fatou, ou para onde deveria ir, não sabia o que deveria fazer para ganhar o amor da deusa, não sabia que tipo de plantas podia ou não comer e não sabia como atirar com o arco de sua mãe que era grande demais para ela. a criança de olhos azuis logo percebeu a triste verdade, ela não sobreviveria na floresta, e nunca voltaria para casa, ou ganharia o amor da deusa.

Até que algo mudou, e a criança foi achada por alguém, um vanára bondoso vagava pelo bosque quando viu a criança e decidiu que ele a adotaria, o vanára a ensinou a ler e escrever, a caçar, a sobreviver, lhe ensinou sobre muitas coisas, sobre amor, respeito, justiça e bondade, lhe ensinou que quando exista algo errado no mundo é nosso dever lutar para mudar aquilo, não interessa os riscos ou quem esteja contra nós,  ele a levou em suas viagens, e mostrou o mundo a ela. E em cada lugar onde eles passavam ela aprendia mais e mais sobre o mundo e desenvolvia suas habilidades. Até que ele achou que ela estava pronta e eles se separaram.

 

Nóc fez uma pausa e acariciou os cabelos de Helm que observava com olhos brilhando esperando pela sua parte preferida da história, a única parte que na verdade nunca aconteceu, mas Nóc achava que a criança não precisava saber daquilo, porque talvez estragasse a sua história favorita, infelizmente a vida nem sempre tem um final feliz, e Helm já tinha tristeza o suficiente na vida real.

 

—Então a garota de olhos azuis, agora uma mulher que viajou pelo mundo aprendendo e se aprimorando, vai em direção ao seu lar, para enfim tornar-se digna de voltar para sua casa. E só havia um jeito de fazer isso, purificando o santuário conhecido como coração de Diana uma das  terras mais sagradas para os elfos da Lua, porém durante a era da podridão ele foi atacado e tomado por criaturas portadoras da praga arcana, uma anomalia mágica do mundo antigo, capaz de corromper qualquer ser que entre em contato com ela. A garota de olhos azuis foi até o coração de Diana sozinha assim como Antílian o rei antigo rei élfico das lendas fizera no passado. Por dois meses ela lutou contra as criaturas, foram os dias mais difíceis de sua vida, mas no fim o santuário estava finalmente purificado e a ela enfim pode voltar a sua aldeia. 

 

Então Helm começou a falar em uníssono com Nóc novamente para terminar a história.

 

—E desse dia em diante a escuridão nunca mais voltou ao coração de Diana, a garota de olhos azuis voltou a seu lar onde ela foi acolhida por seu pai que finalmente a havia perdoado, e ficaram juntos por um longo tempo até que ela sentiu falta de seu mestre e do resto do mundo e então partiu com a benção de seu pai que para sempre estaria esperando pela sua volta na cidade de prata. onde a garota de olhos azuis seria eternamente bem vinda.

 

E então ambas disseram ao mesmo tempo.

 

—Boa noite Helm.

 

—Boa noite Nóc.

 

E ambas permaneceram em silêncio nos braços uma da outra pelo resto da noite. Enquanto Nóc pensava no final que sua história teve na vida real, e de como não podia ser mais diferente do final da história que contou. Por muito tempo desejou que a vida fosse como as histórias mas sabia que não era.

 

Na vida real a escuridão não se ia para sempre, e depois que Nóc purificou o coração de Diana a escuridão voltou a se instalar lá como já havia feito por séculos, na vida real os pais não se arrependem de seus pecados, perdoam seus filhos e esperam por eles em uma cidade de prata, eles se matam de desgosto pensando nos erros que cometeram sem nunca reencontrar sua família. E na vida real o Lumien com toda a certeza não são bem recebidos em suas cidades após provarem seu valor como acontece nas histórias e retornam apenas para serem considerados a escória da sociedade. 

Nóc sabia que a realidade era assim, e que na realidade meninas com doenças não são curadas por sua mãe adotiva e vivem uma vida feliz. Mas Helm merecia mais do apenas a realidade, ela era boa demais para esse mundo, merecia mais do que o mundo estava disposto a lhe oferecer, e Nóc iria se certificar que ela teria mais. e faria tudo ao seu alcance para dar a ela um mundo na qual valesse a pena viver. Um mundo melhor

 

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